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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

POEMA

Desvairio de secA

Rosalvo Júnior, do livro Frente & Versos, 1985

Caladas
Fechadas
Trancadas
A sete, a muitas chaves
As nuvens em greve
A água aprisionada
Quebrando as tapagens
A terra se acabando
Mais uma estiagem
A procissão reclamando
As beatas
Coronéis
Crianças
Mulheres
Velhos
Prostitutas
Até os cegos, os mudos, os surdos
Os surdos-mudos
Vai todo mundo implorando
Uma mijadinha do céu

Faz tempo que não tem chuva
O tanque está na reserva
Faz tempo que não tem água
O banho não existe mais
Faz tempo que não existe mais
Faz tempo que não tem verde
Tá tudo seco
Torcido
Nem as lágrimas
Dos meus
Dos olhos de todo mundo

Seu Nino da Farmácia
São José
Isaura com seus cravos
Ferroando-lhe os pés
Joana Messias
Na gulodice das mangas
Laranjas, puças
Mangabas, potombas, araçás
Que não têm
Nem Thomé
E seu companheiro cigarro
Inseparável
Como o saxofone a Nivaldão
A Jani, o trombone calado
Nem Vilmar no conserto do carro
Espera mais chuva
Lalu desistiu do reisado
Catarina não faz mais bailado
Chica Laginha - a puta
De Deus e do diabo
Insiste e ensina a lição de trepar
As costelas das vacas
Vacas magras
Sedentas
Praga de faraó no sertão
As penas descoradas
Das juritis sem ânimo
Nambus, codornas
Desânimo
(Apenas uma ou outra acauã agourenta...)

Mais uma caba morre
Feste de urubus
Banquete posto à catinga
As galinhas (poucas restaram)
Fazem caretas para a panela
Lá de casa
Eu, à espera da asa
A parte preferida
Ração diária
Comida com farinha de mandioca
Raiz plantada no roçado
Do meu pai
Político acostumado
A perder nas urnas
A força
Mas valente
Montado na mula magra
Faminta, esguelada
Caindo das pernas
Mas altina
Sabe que carrega o corpo de um bravo

Ana doméstica arrancou
A raiz do umbuzeiro
Dançou
Dança de guerreiro tapuia
Índios da qual era a última descendente
Pura
Fez pirão e repartiu
Antes que a fome
Consumisse
E sumisse seus filhos
Debaixo de sete palmos de terra
Seca
Sedenta de sangue
Sangue nas nuvens fugidias
Exiladas num lugar qualquer
Sob a serra da Colônia
O velho açude baixava
Faltava-lhe uma transfusão

Os monturos
(Antes estivesse sujos do que rapados)
Carecas
Sem sujeira
Comidos nos almoços
(Mas estão limpos)
Não
A prefeitura não é tão eficiente assim não
O luxo sumiu dos monturos
Para refazer forças
Do povão franzino
Esquálido
Com fome

Que saudade que dá
Essa falta de lixo
Que vontade que dá
De se ver muito lixo
De saber que a fartura
Das melancias de Ana do Bode
Na feira
É quimera

Se espera que a mijadinha do céu
Em cima de nós
Eu tão criança ainda
Sem entender do riscado
Esperando por São Pedro
Mandar nem que seja um carro-pipa
Umzinho só
Pois não aguento
Na incompreensão que tenho
Na sezão, na palidez, na estupidez
Na timidez desses versos
Mas peço

‘Santa, santa, santa
Maria Madaleno
Pee ao senhor
Que nos dê chuva na terra
Chuva por esmola
O pão que nos consola
Que os anjos roguem a Deus
Santa Maria
Orai por nós’

A prece valeu
O formigueiro alvoroçou-se
Enfileiradas, as formigas
Filas brancas
Ovos dos filhos
Exílio
Saídas do chão
As formigas procuram lugar mais seguro
Livre de inundação
Anuncia a boa nova
Ou nova boa
Como queira
O formigueiro

Os rabos-de-galo
Não os tragos misturados
Mas as mnuvens
Enfileiradas
Os rabos-de-galo no céu
Desaparecem
O vento seco fica mais quente
Arranca o suor da gente
Leva água lá prá cima
De manhãzinha
A neblima acontece

Andorinhas fazem festa
Na praça esturricadas
Na igreja descorada
Nossa igreja de nossa
Nossa Senhora
De Brotas
De Brotas de Macaúbas

A chuva começou miudinha
À noitinha
Minha mãe tranca a porta da casa
Intima que eu não saia
Que fosse dormir
Que sonhasse
Que não a aporrinhasse

Mas a chuva tinha de ser comemorada
Ela não pode impedir-me a banhada
E um corpo menino amarelo
Marcado por costelas
Magreza de seca
Foi-se
Misturou-se com outros corpos
E muitos outros
Que atríam tantos
Como a luz aos besouros
Corpos enxaguados
Suados
Desesperados
Contentes agora
Despidos das roupas secas
Seca molhada
Não tem mais seca
Tem pingos dágua na pele
Que envolvem
Perdem o envolver
Para que um outro
Derrame sobre os costados
E limpe dos corpos dos pecados

A enxurrada carrega a sina
Dobra na esquina do finado Félix Rosa
E inunda o roçado de Zé Lauro
Ao pé do Boqieirão pingando
Lava os paralelepípedos
Encharca o chão
Faz os minadouros
Da casa de Zé Arcanjo
Outro finado
Vizinho de outro
Finado Miruzinho
Também Zé

Os minadouros esguiçam
Eu, nuelo
Cabelo
Peito
Pescoço
Braços
Pernas
Caroços balançando
O balé do falo molhado
Em festa
Umbigo molhado
Boca saciada
Pernas a correr
A testa suando chuva
Desde a casa de Maria de Saldanha
Até a de Mena
Na estrada do Olho d’água
Sem cessar, sem parar
A chuva me deixa pelado
Ao amanhecer
Quando o clarão
Mesmo com o sol das nuvens
Revela minha fuga
Às moças do Colégio da Barra
Santa Eufrásia
Onde Irmã Peregrina reinou
As meninas chegam contentes
Tento tapar com as mãos
Franzinas mãos
A nudez
Corro prá detrás de Zé Bidé
Outro Zé, molhado
Contente
Extasiado
Afiando a enxada
Vai ter plantação minha gente!

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