O espaço é aberto para criações literárias (contos, poemas etc). Este conto - de minha autoria - venceu concurso literário promovido pelo governo da Bahia (1981) e também foi publicado no Caderno Literário do jornal A TARDE. Faz parte de um conjunto de histórias que formarão um livro a ser publicado em breve.
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Vamos ao conto: URNA É COMO BARRIGA DE MULHER GRÁVIDA
A notícia
Sentada em sua cadeira de todos os dias, Dona Cezinha Batista atendia ao pequeno número de freqüentadores da agência dos Correios e Telégrafos de Palmeiral. Acordava cedo, é verdade. Fazia o café do Dr. Batista, seu marido, e regava as plantas. Tinha tempo especialmente para isso, sua distração - talvez a única da vida. Era veloz no andar e no serviço. E ainda concluía o curso Normal, à noite.
Às oito em ponto, Dona Cezinha Batista chegava aos Correios, onde era a única funcionária, além do velho guarda-fios, Seu Deco, e do carteiro Antunin. Ela abria as portas, limpava a mesa, dava uma geral na sala e atendia ao telefone. Palmeiral não tinha Morse. Essa, uma antiga reivindicação de Dona Cezinha. Não pela modernidade do aparelho, mas, e principalmente, pelo charme da palavra, e pelo segredo na hora de passar as mensagens telegráficas.
- Alô, Ipupiara! Bom dia, Oscar. Como está o tempo aí?
Em poucos minutos, sabia as novidades da cidade vizinha e contava as da sua. Mas era só para iniciar a conversa com o colega do outro lado da linha. Rápida e claramente, repetia as palavras do telegrama com destino à capital. Era telegrama político. Os ânimos estavam quentes em Palmeiral com a vizinhança das eleições. Como sempre, o MDB local prometia revanche. Ficava só na promessa. A Arena sempre ganhava com largura as disputas de prefeito, vereador, deputado e senador. Isso sem contar que, com as indicações biônicas do alto escalão do governo, era a Arena quem faturava tudo. O telegrama que Dona Cezinha passava, caprichando na pronúncia dos esses e erres, ia de Thomé Ludovico, presidente do diretório do MDB local, para o deputado João Borges de Figueiredo, figura impoluta da oposição baiana e patrono de quase todas as obras realizadas no município antes do golpe militar de 1964, que alijou boa parte dos bons brasileiros da política. O telegrama relatava as esperanças do partido da oposição, segundo dizia, franco favorito nas eleições daquele ano.
Dona Cezinha Batista ditou as palavras e arriscou um comentário. Só arriscou. Ela era, reconhecidamente, neutra em política.
- Este ano o negócio é quente. Ernesto Vidigal está apavorado com a campanha emedebista.
Calmo e apático, do outro lado da linha, Oscar retrucava, taciturno, a ladainha de todas as horas.
- É. Pois bem.
Os oposicionistas
Os ânimos estavam, de fato, acalorados em Palmeiral, uma cidadezinha perdida nos confins da Chapada Diamantina. O sol, a pino, fritava o juízo das pessoas que participavam da feira em torno do Mercado Municipal, na Praça da Matriz. O sábado trouxe à cidade gente de todos os distritos, vilas e povoados. A casa de Thomé Ludovico, apinhada de mateiros: vendedores de feijão, do Araci; de farinha, da Colônia; de laranja, do Pé-do-Morro; de panelas de barro, do Barreiro Preto; de ovos, da Feira Nova... A conversa, uma só: política. De Ouricuri do Ouro vinha a adesão de Mané Teotônio, ferrenho adversário da oposição em campanhas anteriores, mas que bandeara-se de mala, cuia e votos para os lados do MDB. Na sala da frente da casa, situada na parte alta da rua, quase defronte da igreja, Thomé Ludovico batia todos os dedos de prosa com Betinho Viana, o eterno candidato a prefeito. Dona Cidália, a mulher de Thomé, servia, como sempre, enraivada, cafezinho e tira-gosto - um mexido de carne de bode cozida, passada na farinha com cebola frita na gordura - aos ‘homens-do-mato’, como ela sempre chamava o eleitorado do marido. Mesmo com raiva, servia diligente, auxiliada por um sem-número de ajudantes. Às vezes, resmungava baixinho.
- Nojentos! Sujam todo o meu tapete.
Cigarro pendurado no queixo, soltando largas baforadas, Betinho Viana, ao que parece, pouco se importava com as queimadas que dava na camisa com as cinzas mal apagadas, caídas do forte cigarro de fumo cortado e enrolado na palha. Prestava mais atenção ao assunto do momento, o seu preferido, e que era muito mais importante - a política.
- As ameaças dos Vidigal vão sair pela culatra. Desta vez o povo está conosco, Thomé. É batata!
Thomé Ludovico, camisa mal enfiada nas frouxas calças de linho branco, chapéu de feltro escuro e sapatos muito bem engraxados - um lorde. A personificação do entusiasmo que varria a campanha emedebista. Ele tinha um ‘explicatório’ para essa performance. Conivente em outras apurações, o juiz gaúcho tinha acabado de ser transferido para outra comarca.
- Vai fazer marmelada no raio que o parta! Este ano as coisas serão muito, muitíssimo diferentes!
Thomé Ludovico falava e se exaltava, e Betinho Viana incensava a conversa com a fumaça do cigarro forte, como sempre.
- É tiro e queda. Nesta campanha, conseguimos sensibilizar o eleitorado. Tá pensando o quê? Eleitor de cabresto é coisa de outro tempo. O coronel Valeriano Vidigal já morreu faz tempo, e que o diabo o tenha muito bem quieto.
Thomé Ludovico improvisava o discurso, mesmo fazendo espuma pelos cantos da boca e tendo que tapá-la com a mão para não chover cuspe sobre a platéia. Os ‘homens-do-mato’ o cercavam-no e a prosa ganhava ares de comício. A vitória de Betinho Viana e da oposição, dali a duas semanas, essa ninguém tirava do papo de Thomé.
A madrinha
Do outro lado da cidade, o casarão de Ernesto Vidigal, majestoso e bem caiado. Mesa farta e móveis ‘trazidos da Bahia’, como sempre repetia onde quer que estivesse e o assunto fosse o belo mobiliário de jacarandá, herança da família. Na casa dos Vidigal, como em qualquer outra casa de Palmeiral, o clima não podia ser diferente. Novamente candidato a prefeito pelo partido da ‘gloriosa’ Aliança Renovadora Nacional, a Arena do governo e dos militares do golpe de 64, Vidigal contava na ponta do lápis os prováveis votos que teria. Seria uma grande vitória.
- Uns quinhentos na frente daquele aprendiz de político.
Ernesto Vidigal jogava para a platéia e repetia que os ‘adversários de pátria’ não perdiam por esperar. Nôzinho da Farmácia, esse sim, ia pagar caro pela desfaçatez de mudar de lado. Ficaria a pão e água e não venderia um mísero Melhoral que fosse se dependesse de pedido da prefeitura.
Dentro do vestido cor-de-rosa, Dona Vivinha Vidigal recebia, na sala ao lado, as representantes da Liga Palmeirense do Bem-Estar do Menor Abandonado. Sob seu comando, a Liga tinha realizado obras assistenciais por todo o município. Num raio de quarenta e tantos lugarejos, não ficara um cafundó sequer sem os benefícios da entidade. As chances, portanto, eram ótimas. Principalmente para ela, candidata a ser a mais votada para a Câmara Municipal, que presidiria, com certeza. Esse, o primeiro passo para vôos maiores. Disputar o pleito de deputada estadual, quiçá o de federal, era seu objetivo, que escondia até mesmo do marido. Representando a mulher palmeirense, Dona Vivinha sonhava com ‘ganhas fáceis’ na competição de dali a 15 dias. Os mais de 200 afilhados, compadres e comadres que tinha já eram uma garantia para levá-la a essa primeira vitória.
Estavam nesse trelelê quando um grupo chefiado por Oscarlito Pedrosa, contumaz presidente da Câmara, chegou com muito alarido na casa dos Vidigal. Ele trazia novas animadoras. Apesar da dissidência de Mané Teotônio, de Ouricuri do Ouro, em Novo Horizonte a urna viria fechada para os arenistas. Apenas em Buriti Cristalino o eleitorado continuava indeciso. Em Cocal, a inauguração da água encanada, e a luz em Feira Nova - serviços feitos às pressas - calaram os mais revoltados com a administração do prefeito atual, Jurandy Lourenço, um pau-mandado de Ernesto Vidigal que, apesar dos conselhos do líder e chefe, andara dando suas cabeçadas e, por isso mesmo, encontrava-se afastado, estrategicamente, da campanha. Essas obras com cores e cheiros eminentemente eleitoreiros iam garantir os votos. O eleitorado votaria em massa no candidato Vidigal.
- Os modebas desta vez não vêem nem o cheiro da ‘Madrinha’.
Garantia Zequinha Gonzaga, outro correligionário governista, referindo-se como ‘Madrinha’ à prefeitura municipal, há muito precisando de um banho de loja, pois estava com pintura gasta, os passeios estragados pela chuva, uma lástima.
A campanha
Na feira de Palmeiral o assunto eleições ganhava formas e versões as mais
diversas, a depender de quem contava as notícias e de quem fazia as
especulações. Se arenista, já sabe, a vitória de Ernesto Vidigal era barbada. Na
boca dos ‘modebas’, corria fácil o apoio de Mané Teotônio, os comícios da
última semana, os discursos de Onofre Sapucaia, coletor aposentado e muito
respeitado na região. Cada qual puxava a brasa para a sardinha do seu
interesse.
De fato, os últimos comícios do MDB mostravam claramente o favoritismo
de Betinho Viana. Nunca Palmeiral havia testemunhado tamanha demonstração
de força da oposição. Desde os tempos do Partido Libertador, do finado
Osmundo Lemos, que os oposicionistas não mostravam tanto vigor eleitoral. Até
o antigo animador de campanhas arenistas, Venâncio do Saxofone, achara-se
de se indispor com Ernesto Vidigal - questões de aforamento. E bandeara-se
com instrumento e arte para as hostes adversárias. E tome-lhe toque! Em cada
canto, os acordes musicais de Venâncio e os discursos de Onofre Sapucaia
incendiavam o povo. Tanto em Lagoa de Dentro, como na Barrinha e em Alvorada, a retórica do orador levara a platéia às lágrimas, apesar de muito
pouca gente ter entendido o discurso.
- Palmeiral periclita, virtude intemperância alcoólica do prefeito, que nada
manda, só desmanda. Precisamos acabar de uma vez por todas com essa
situação etílico-insustentável. É um preço alto que estamos pagando, pelo erro
de um dia, que resultou nesse prefeito imposto por um juiz ladrão e conivente.
Mas o povo vai dar um basta. E será uma grande vitória. Quando elegermos
Betinho Viana nós nos sentiremos tão jubilosos e ledos que os nossos corações
serão arrebatados de alegria.
Nem as moças de família que enchiam os caminhões dos comícios
entendiam o significado de tão elevadas palavras. Mas a campanha seguia
firme, varando o município de cabo a rabo. Era bonito de ver. Corriam, como
sempre, os tradicionais fuxicos e disse-me-disse. Falavam horrores das filhas
de Joaquim de Anita. Tudo língua grande.
- Filoca, Tetê e Carmosina eram lá moças de se embeiçar com qualquer um?
E os comícios desciam e subiam. Espalhavam os ventos de mudança em
todos os buracos do mundo em Palmeiral. Apesar da tranqüilidade, muitas
desfeitas, de lado a lado, se repetiam. Na Mata do Bom Jesus jogaram borra de
café e areia em Betinho Viana. Em Ouricuri o comício de Ernesto Vidigal não
conseguiu sequer passar pelo distrito - os moradores fizeram uma barricada de
pedras e os carros tiveram de bater em retirada. Que fosse para a Lagoa
Nova. Em Ouricuri, Vidigal e seu bando de puxa-sacos não passavam,
garantindo a promessa de Mané Teotônio.
Na cidade não falhava uma única casa onde não se conversasse sobre a
campanha. Com exceção, é claro, da casa da telegrafista, Dona Cezinha
Batista, apesar da preferência do marido, o Dr. Batista, pelo emedebistas. Os
prognósticos, os mais variados. No Bar Samburá, de Otacílio de Ninga, o
proprietário do ‘estabelecimento sócio cultural e recreativo’, como definia a
espelunca, as apostas se multiplicavam. Estranha era a ausência de brigas como
as de outras querelas politiqueiras. Só uma ou outra pirraça. Como as que
acompanhavam Thomé Ludovico quando passava pela tradicional Rua do Bar.
- Modeba sem leitura! Heim, Tumezim Modeba?
Gritavam os moleques pagos por algum despeitado. O apelido atazanava o
juízo do homem, que ficava tiririca e a ponto de bala, mas não reagia, apenas
repetia:
- Os moleques e despeitados ladram, mas as urnas chegarão recheadas de
votos.
Afora esse tipo de incidente, nada de mais grave acontecia em Palmeiral. Só
as apostas cresciam. Zeca Paixão, o eletricista, empenhou inclusive o
inseparável radinho de pilha, de onde acompanhava as vitórias do seu timaço, o
Botafogo Futebol e Regatas, de Garrincha e Nilton Santos. Zeca também
apostou as galinhas, a mesa, as cadeiras e até o pote d’água. Era um ‘modeba
tinindo’. E não adiantavam os conselhos de Dona Zilu, a sogra, nem de
Filomena, a mulher, que sempre dizia:
- Zeca, tu vais ficar de tanga e chapéu de gazeta.
Ele, nem tchum! Não arredava o pé. As apostas tinham sido juradas e
sacramentadas.
- Palavra dos Paixão não volta atrás.
Isso Zeca Paixão garantia. Principalmente porque tinha como certa a vitória
de Betinho Viana, seu candidato. Ele, um Zeca farejador de primeira. E se
garantia...
- Está garantido e ponto final.
A eleição
Paimeiral passou seus 15 dias mais demorados da história. Mas, finalmente,
o dia 15 de novembro chegou. Diga-se, com justeza, realizando eleições
ordeiras como nunca. Apenas um pequeno atrito, logo após a chegada da
derradeira urna, do Santo André. Na porta da agência dos Correios e
Telégrafos, onde as urnas ficariam por dois dias aguardando a chegada do juiz
substituto, vidigalistas e modebas mais exaltados chegaram a ensaiar um bate-
boca, interrompido pela providencial interferência de Dona Cezinha Batista.
- Onde já se viu. Brigar por tão pouco! Os palmeirenses tinham que
confirmar e referendar o patriotismo com que realizaram o pleito. Um exemplo
para as cidades vizinhas, quiçá para a capital do estado. O governo ficará
satisfeito. E, o mais importante: terminada a campanha, voto na urna, todos têm
que se irmanar e formar uma única família, para a glória de nossa terra, e sob as
bênçãos do Divino Espírito Santo.
- Dona Cezinha! Dona Cezinha! Dona Cezinha!
Os gritos do povo fizeram eco na Pedra do Urubu e nos outros morros que
cercavam a cidade. E uma calorosa salva de palmas para a oradora
desmanchou o bate-boca. Palmeiral pôde voltar à normalidade, se é que
podemos chamar o clima de expectativa e aflição para os dois lados em
disputa de coisa normal. O novo juiz chegaria de Macaúbas em 48 horas.
Tempo suficiente para esquentar boatos cabeludos. Um deles falava no
caminhão de enxadas e nos 40 milhões em dinheiro, vindos da capital, para
ajudar Ernesto Vidigal. Essa conversa bulia no juízo de Thomé Ludovico. O
‘trombone’ corria solto. E foi com esse clima que, enfim, o Dr. Aristodemo
Belmonte de Santa Rosa desembarcou em Palmeiral. A apuração começaria
logo na manhã seguinte.
A apuração
Foi um alvoroço. A Palmeiral apinhou-se de gente, e as pensões Flor do
Sertão e Santa Bernadete, lotadas. No salão nobre da prefeitura municipal,
onde funcionava a Justiça, o aparato fazia jus ao acontecimento. Às oito em
ponto, dia 18 de novembro, foi aberta a primeira urna. Da sede. Contados os
votos, o candidato do MDB confirmava o favoritismo - 17 de frente. Bela
largada, fazendo a cidade explodir. Foguetes espocavam na porta do
Mercado, em frente à Igreja de Nossa Senhora de Brotas, no Boqueirão, na
Rua Nova, no Tanque e até na Capelinha.
Thomé Ludovico, de caneta e papel nas mãos, anotava pacientemente os
resultados. Tintim por tintim. Não havia mais dúvidas: Betinho Viana seria
vitorioso. É claro, com a ajuda de Santo Antônio - adiantaram as novenas de
Dona Cidália, sua mulher. O recinto da apuração fervilhava. Gente por todos
os lados. Precisou ser evacuado pelo menos umas cinco vezes. Voto a voto, a
vantagem de Betinho Viana aumentava. As urnas consideradas favoráveis a
Ernesto Vidigal contra-atacavam, mas nada. Viana seguia, impávido, na frente.
De um lado da sala, descansando seus 112 quilos numa cadeira preguiçosa
mandada vir especialmente para o ocasião, Ernesto Vidigal não perdia a pose,
apesar do suor que lhe caía fartamente do rosto. Impávido, pouco se importava
com os primeiros resultados. Seus currais eleitorais não falhariam. Tinha
certeza. Essa tranqüilidade só foi quebrada quando Valdivino Miranda, um
desses ‘carrapatos’ que não desgrudava do seu pé, inquiriu o juiz por causa
‘desse tal de idem, que não é candidato de ninguém’. Vidigal mostrava-se
calmo, muito diferente de Oscarlito Pedrosa, seu mais importante aliado. De
seu canto, Pedrosa destruía as unhas com os dentes. Era todo preocupação. A
frente inesperada de Betinho Viana em seu reduto, o Buriti, fazia-o tremer de
ódio. Beto Santana, do açougue, pagaria caro. Ah, se pagaria! Ele ia ver como
desaforo custa caro.
Dona Vivinha Vidigal também acompanhava com atenção felina a contagem
dos votos. Estava com a eleição de vereadora garantida. Os benefícios da Liga
Palmeirense de Assistência Social e os cerca de 200 afilhados tinham gerado
dezenas e dezenas de votos. Ela seria a mais votada para a Câmara. Os
olhinhos apertados na cara miúda e rechonchuda reluziam. Dona Vivinha
descansava a mão direita sobre o ombro esquerdo de Ernesto Vidigal, mas o
olhar não perdia um movimento sequer na mesa de apuração. Vez por outra
deixava escapar um suspiro, e como esses vinham como minutos marcados,
incomodavam o marido, que a recriminava com o olhar.
Betinho Viana seguia a contagem dos votos do lado de fora, pois não
conseguia se separar do velho cigarro de guerra que lhe queimava a camisa. Ele
pouco se dava conta desse bordado a fogo que, a toda hora, lhe pinicava o
peito. Sua vitória, iminente, era o mais importante. A cada nova urna aberta
mais votos iam se somando à sua frente. Trinta e cinco urnas apuradas no
primeiro dia. Na casa dos 147 os votos de vantagem. Uma diferença
histórica, que fazia o candidato oposicionista pensar com os próprios botões: o
jornal A Tarde dará em manchete. O caso merecia o destaque. Pela primeira
vez, desde a criação do MDB, o partido nunca havia vencido numa pequena
cidade do sertão da Bahia.
Às duas da madrugada, o juiz deu por encerrada a contagem por aquele dia.
Retornaria à maratona na manhã seguinte. Betinho Viana ia dormir com uma
frente de 147 votos sobre Ernesto Vidigal. O galo cantava nalgum terreiro e
Palmeiral foi dormir excitada. Menos o bar de Otacílio de Nenga, que
fervilhava. E quem dormiria tranqüilamente naquela madrugada? Somente
Dona Cezinha Batista, a imparcial telegrafista. No mais, o clima era de vigília e
expectativa.
Em sua casa, Ernesto Vidigal abandonava o ar imponente que mantinha em
público. Numa reunião às pressas convocou a cúpula do partido a quem
desabafou sua ira. A saliva jorrava farta pelos cantos da boca. Era sempre
assim quando ficava nervoso e exaltado. Oscarlito Pedrosa era o alvo preferido.
- Incompetente! Como não conseguiu mudar os votos em Buriti? É pequena,
mas derrota.
Isso Vidigal não perdoava.
No bar Samburá, os partidários de Betinho Viana comemoravam. Garrafas e
mais garrafas da boa pinga de Lelé eram consumidas. Algazarra geral. Nem os
pedidos de Dona Filomena, a mulher de Otacílio, tiveram efeito. Ali, todo
mundo falava ao mesmo tempo numa confusão que envolveu até os mais
precavidos, com medo de uma reviravolta. Afinal, a urna de Feira Nova,
tradicional reduto arenista, não tinha sido aberta.
- Pode haver uma virada, Thomé. Urna é como barriga de mulher grávida. Só
se sabe o que tem dentro depois de parida.
O argumento de Chico Barbeiro pouco interessava a Thomé Ludovico. Desta
vez, acreditava, não tinha doutor para dar jeito. O mal era sem cura para
Vidigal e sua tropa. Finalmente as urnas lhe concediam a revanche, e o partido
da oposição não ficaria mais na bagagem.
Modeba, pensava Thomé com o que restava dos cabelos brancos, tão ralos
que mais pareciam uma penugem a cobrir-lhe a reluzente careca. Não o
chamariam mais de Modeba. Movimento Brasileiro Democrático. Isto sim.
Estava até pensando em propor a mudança da sigla do partido. MDV -
Movimento Democrático Vitorioso! Vitorioso. Claro, sairá vitorioso. Assim,
Thomé Ludovico não seria mais chamado ‘Modeba Sem Leitura’. Seria
respeitado. Thomé Ludovico. Tinha Nome. Herdara-o do avô, homem honesto
e ganhador de eleições...
O resultado
O sol mal havia despontado em Palmeiral e as ruas já regurgitavam de gente.
Nenzinha de Filó já tinha ido ao Boqueirão, lavado a roupa, e vinha areão
abaixo com a trouxa na cabeça. Tudo para não perder o reinício da apuração.
Joana Candira já estava com a galinha caipira, para o pirão de parida que o
patrão adorava. Também adiantava o feijão gurutuba e o arroz que seriam
servidos na casa de Betinho Viana. Como Nenzinha e Joana, todo mundo
madrugou para adiantar o que podia, antes do juiz começar a contar os últimos
votos.
Às oito em ponto, o Dr. Aristodemo Belmonte de Santa Rosa reiniciou a
apuração. Poucas urnas faltavam ser abertas, onze ao todo. Ele esperarava
concluir os trabalhos até o meio-dia, se possível. Vidigal retomou seu posto de
observação, agora sem a companhia de Dona Vivinha que preferiu ficar,
discretamente, do outro lado da sala. Oscarlito Pedrosa tinha ficado em casa,
com medo do resultado. Thomé Ludovico e Betinho Viana, mesmo de ressaca
pela comemoração antecipada, também mantinham-se a postos. Seguiram
atentamente a contagem dos quarenta e quatro votos de frente para Vidigal na
urna da Nova Vista, a primeira a ser aberta naquela manhã. A redução para
cento e três votos na diferença deu alma nova aos boatos do caminhão de
enxada, dos quarenta milhões vindos da capital. Ernesto Vidigal reassumiu a
pose, cedendo a preocupação para seu maior desafeto, Thomé Ludovico. Nas
dez urnas restantes ainda estavam as de Feira Nova e Cocal, currais vidigalistas
de todos os costados.
Em poucos minutos a notícia se espalhou e o recinto da apuração apertou
ainda mais. Oscarlito Pedrosa chegou ofegante, ainda enfiando a camisa na
calça e com o cabelo todo assanhado. A contagem prosseguiu. A frente do
MDB ia minguando, o que enlouquecia a cabeça de Thomé Ludovico, agora de
pé, quase por cima dos mesários. Faltando três urnas, a frente de Betinho Viana
foi reduzida para apenas 19 votos. Vermelho como xixá, Betinho Viana
levantou-se da cadeira e acendeu o cigarro de palha. A camisa toda esburacada
e a fumaça incomodando a todo mundo. Mas ninguém se atreveu a reclamar.
Ouricuri reforçou a diferença pró MDB - oitenta e nove agora. Novas
esperanças. Saudável quase anula a vantagem - somente seis votos de frente. E
restava uma única urna, da sede, exatamente aquela onde Thomé Ludovico e
sua mulher, Dona Cidália, haviam votado. Esperanças e preocupações dos dois
lados. Urna aberta, respirações suspensas. Contados e recontados os votos -
sete de frente. Para Ernesto Vidigal. Vitória da Arena. Por um voto de
diferença. Um só.
A cidade, ou pelo menos o lado que se manteve fiel a Vidigal, de novo
prefeito, explodiu em festa. A passeata dos arenistas levou Vidigal nas costas.
Delírio da puxassacada. Dona Vivinha, a mais votada para vereadora, na frente.
Oscarlito Pedrosa, a seu lado. As mulheres da Liga Palmeirense do Bem-Estar
do Menor Abandonado carregavam uma grande faixa improvisada com quatro
metros de morim...
‘Modeba sem leitura’
Cabisbaixo, Thomé Ludovico chegou em casa a passos apressados. Entrou,
olhou para os lados à procura de Dona Cidália. Do lado do fogão de lenha, a
mulher chorava, o que preocupou Thomé. Afinal, ela não se importava muito
com política, não estava descascando cebola. Chegou mais perto, abraçou a
companheira de tantas lutas e arriscou um consolo.
- O que é que há, mulher! Perdemos uma batalha, mas não perdemos a
guerra.
Dona Cidália soluçou, sem nada responder. Thomé bem que notara a tristeza
dela desde o dia das eleições. Tivera pouco tempo para saber o porquê de
tanta tristeza. É que ele não podia imaginar que Dona Cidália, a quem ele tanto
se esforçara para ensinar como votar, tinha virado a cédula eleitoral de cabeça
para baixo e deitado o risco no quadradinho ao lado do nome de Ernesto
Vidigal. Isso, ele não ia entender nunca.
Do outro lado da rua a passeata da Arena desfilava festiva. Um moleque
olhou Thomé Ludovico pela janela e arriscou a sentença.
- Mais uma, heim, ‘Modeba Sem Leitura’!
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